Hoje vou começar a falar do estudo prático de uma interpretação lírica específica abordando duas técnicas que são totalmente interligadas: a ação de dividir a obra e a identificação dos objetivos que norteiam a ação de cada personagem  . Falarei sempre usando um personagem de ópera como exemplo,  mas este mesmo estudo serve para cenas avulsas (sejam elas árias ou conjuntos) e também para canções de câmara (no caso da canção de câmara, considere o seu personagem o “Eu” poético que expressa o texto cantado).

Em post anteriores eu falei sobre técnicas e conceitos gerais na formação de um artista lírico (Ser ArtistaA caixinha das emoçõesTécnicas para sair do personagem e  Imaginação) e comecei também a apontar os primeiros passos no estudo específico de um personagem nos posts: Reunindo dados sobre seu personagem e Cercado por circunstâncias. Recomendo a leitura destes posts para melhor compreensão do assunto que abordarei no post de hoje.

Por partes

“Para elaborarmos a partitura da peça tivemos que dividi-la em pequenas unidades. A técnica de divisão é relativamente simples: qual é o núcleo [essência] , (…) a coisa sem a qual ela não pode existir?” ¹

A primeira vez em que nos debruçamos sobre para começar a estudar uma ópera, a imensidão de sua duração e ações parece nos oprimir. Se a dividimos em pequenas partes, porém, tudo ficará mais fácil. Então, comecemos por esta divisão, partindo do macro para o micro, o macro sendo a peça completa e o micro sendo a menor ação cênica existente,  que chamaremos de beats².

ato. Cada uma das partes em que, convencionalmente, é dividida a peça teatral, e que, por sua vez, pode ser constituído de cenas e quadros. ” ³

As primeiras divisões que devem ser olhadas são aquelas que já estão na partitura. A maioria das óperas já possui uma divisão em atos, em que o espetáculo é interrompido. Apesar de ser comum a união de atos nas montagens, para o estudo do personagem mantenha a estrutura original da partitura .

cena. 3. Espaço correspondente, nos atos de uma peça teatral, ao tempo em que os mesmos atores permanecem no palco; trecho do espetáculo. Neste sentido, a duração da cena é determinada pela entrada ou saída de uma ou mais personagens. ” ³

Os atos são então divididos em cenas. Também podemos encontrar essas divisões em algumas partituras,  porém criar a sua própria divisão, pensando no conceito aristotélico⁴ de que uma cena começa com a entrada de um personagem e se encerra com a saída de um personagem (não necessariamente o mesmo), é  muito melhor para o estudo do personagem, já que é muito comum que a divisão das cenas nas partituras aconteça em função de outros aspectos da obra, principalmente musicais.

“Uma batida [beats] começa sob dado conjunto de circunstâncias e termina quando o objetivo foi alcançado ou não e novas circunstâncias se instalam.” ⁵

As cenas são divididas em beats, mas para entender o que são exatamente essas partes temos que entender quais são os objetivos do personagem.

Objetivos – do super ao imediato

“…. fashioning immediate objectives that define what they want in each scene as they pursue heir super-objectives, and then further subdividing those objectives into acting beats. Objectives clarify and motivate your characters’ thoughts and actions and shape their relationships to the other characters on a scene-by-scene basis; acting beats justify the specific actions they take and each phrase they sing as they strive to fulfill each objective. ” ⁶

Os processos de dividir uma ópera para fins de estudo e de definir os objetivos do personagem são totalmente entrelaçados (exatamente por isso estou falando desses dois assuntos no mesmo post) e dependentes, um precisa do outro.

Definir quais são os objetivos do seu personagem é essencial, não apenas para a compreensão geral do personagem, mas também para a interpretação no palco. Os objetivos seguem como guias das ações que devem ser interpretadas em cena.

Existem vários tipos de objetivos, como nas divisões tratadas acima, o melhor caminho é ir do macro para o micro, portanto o primeiro objetivo a ser definido é o chamado super-objetivo.

Super-objetivo

“Empregamos o termo superobjetivo para caracterizar a idéia básica, o cerne que deu origem ao impulso de escrever uma peça. (…) Numa peça, todo o fluxo dos objetivos individuais e menores, todos os pensamentos criativos, sentimentos e ações do ator, devem convergir para a realização deste superobjetivo. (…) Esse impulso em direção ao superobjetivo deve, também, ser contínuo ao longo de toda a peça.” ¹

Para entender o que é de fato o super-objetivo pense em uma meta de vida para seu personagem que justificasse todas as palavras e ações dele na ópera inteira. Apesar de algumas vezes o super-objetivo de um personagem parecer óbvio, ele é antes de tudo uma escolha do intérprete após estudar profundamente as circunstâncias dadas, pois é primordial que não hajam ações na ópera que sejam incompatíveis com o que for escolhido.

Passo-a-passo:

  • Primeiro estude profundamente o seu personagem;
  • Depois escolha um super-objetivo para ele.  Um super-objetivo deve sempre ser em primeira pessoa – para aproximar o intérprete do personagem – e começar com o verbo querer;
  • Após escolher faça uma prova real com ele: releia a ópera inteira e confira se esse super-objetivo realmente funciona em todas as cenas.

Por exemplo, na ópera Carmen de Bizet um dos super-objetivos possíveis para a  protagonista é “Eu quero ser uma mulher livre“.

“As ações dos seres humanos são governadas, mais do qualquer outra coisa, pelo que querem, consciente ou subconscientemente. ” ⁵

Objetivo na cena

Depois da escolha do super-objetivo, crie para cada cena um objetivo específico. Siga a mesma instrução dada para o super-objetivo: estude, crie e faça a prova real para ver se ele funciona. Lembre que o objetivo da cena deve ser coerente com as circunstâncias dadas, ser em primeira pessoa e  ser o complemento do verbo querer, além de se vincular aos eventos e permitir o avanço do conflito dramático ⁵.

Por exemplo na cena do quinteto da Carmen um objetivo possível para Carmen seria “Eu quero encontrar Don José.” Observe que esse objetivo é totalmente compatível com o super-objetivo “Eu quero ser uma mulher livre.”

Objetivos menores (Acting beats) ²

“Every character pursues her super-objective with a variety of strategies that generate more immediate goals. Her strategic goal for each scene or stanza is her objective for that section. Each individual strategy she uses to pursue an objective is called an acting beat.” ⁶

Para encontrar os acting beats use a seguinte construção de frase: “Para conseguir (objetivo da cena) eu vou (acting beats).”  

Seguindo o exemplo da cena do quinteto da Carmen as seguintes frases seriam possíveis: “Para conseguir encontrar o Don José eu vou ficar na taverna.”, “Para conseguir encontrar o Don José eu vou dizer não aos planos dos meus amigos.” , “Para conseguir encontrar o Don José eu vou persuadir meus amigos a atrasarem a viagem.”, “Para conseguir encontrar o Don José eu vou inventar uma desculpa para não ir viajar.”, etc. Depois de criar várias dessa frases, escolha a que se adequa mais ao texto cantado em cada beats e as circunstâncias dadas de cada ação na cena.

Uma dica interessante para textos cantados várias vezes (uma das coisas mais comuns na ópera) é escolher acting beats diferentes para cada uma das vezes que o texto é cantado.

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¹ STANISLAVSKI, C. – Manual do Ator – 2a edição – São Paulo: Martins Fontes, 1997.
² Preferi usar o termo em inglês, pois sua versão em português: batidas pode causar confusão com os termos musicais para analisar a partitura. Esse termo é muito conhecido nos EUA como sendo o termo usado por Stanislavski para essa menor parte de uma peça teatral porém alguns pesquisadores alegam que o termo usado pelo diretor russo era bits (pedaços) mas como seu inglês tinha muito sotaque soou como beats. (Essa história é citada em vários livros, como HAGEN, U. – Técnica para o Ator – A arte da interpretação ética / Uta Hagen com Haskel Frankel  – São Paulo: Martins, 2007, HICKS, Alan E. – Singer and Actor: Acting Technique and the Operatic Performer – Milwaukee: Amadeus Press, 2011. (eBook) e STANISLAVSKI, C. – Manual do Ator – 2a edição – São Paulo: Martins Fontes, 1997.
³ TEIXEIRA, U. – Dicionário de Teatro –  São Luís: Instituto Geia, 2005.
⁴ ARISTÓTELES – Poética – Organon – Política – Constituição de Atenas – Coleção: Os pensadores – São Paulo: Nova Cultural, 1999
⁵ HAGEN, U. – Técnica para o Ator – A arte da interpretação ética / Uta Hagen com Haskel Frankel  – São Paulo: Martins, 2007.
⁶ “... formando objetivos imediatos que definam o que eles querem em cada cena para perseguirem seus superobjetivos e, em seguida, subdividindo ainda mais esses objetivos em acting beats. Objetivos esclarecem e motivam os pensamentos e as ações do seu personagem e moldam suas relações com os outros personagens em uma base de cena por cena; acting beats justificam as ações específicas que tomam e cada frase que eles cantam conforme eles se se esforçam para cumprir cada objetivo.”Cada personagem persegue o seu superobjetivo com uma variedade de estratégias que geram objetivos mais imediatos. Seu objetivo estratégico para cada cena ou quadro é o seu objetivo para essa seção. Cada estratégia individual que ela usa para atingir um objectivo é chamado de acting beat.” (traduções livres) – OSTWALD, D. F. –  Acting for Singers: Creating Believable Singing Characters – New York: Oxford University Press – 2005. (eBook*)

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