Lembro-me bem do dia em que descobri que era essencial para um cantor de ópera estudar teatro. Ainda criança, fui de tarde assistir ao monólogo “A Valsa nº6“, de Nelson Rodrigues, era a primeira vez que eu assistia a um monólogo e me encantei ao ver como uma única pessoa no palco podia contar uma história tão profunda, com vários personagens, e emocionar o público de diversas maneiras. No mesmo dia, à noite, fui ao Theatro Municipal assistir a uma produção da ópera “Otelo“, de Verdi, e fiquei chocada ao ver que, na cena final, Otelo, que deveria matar Desdemona sufocada (por sorte eu já havia lido a peça de Shakespeare e conhecia bem a história, pois quem não a conhecia teve dificuldade de entender o que estava acontecendo no palco), cantava o tempo todo parado na boca de cena, enquanto a pobre soprano morria por si só, deitada na cama, cantando pianíssimos comoventes praticamente de ponta cabeça. Foi decisivo, eu gostaria de ser uma artista como a soprano e jamais como o tenor. Antes mesmo de entrar na faculdade de canto, eu já tinha me formado em artes dramáticas como atriz e estudado direção cênica na USP. Me dediquei durante anos à junção e adaptação destas técnicas e digo, sem sombra de dúvidas, que as teatrais devem ser levadas tão a sério quanto as de canto, e com a mesma dedicação, sendo totalmente aplicado ao seu estudo o conteúdo do artigo Prática Deliberada.
Hoje vou começar, então, a falar sobre Técnicas de Interpretação. A junção da música com o teatro que existe na ópera faz com que seja essencial a um cantor o estudo das artes dramáticas, mas é importante ter claro que as técnicas teatrais não podem ser aplicadas automaticamente. Antes de tudo, é necessário avaliar se essas técnicas não interferem com as técnicas específicas do canto. Tendo em vista esta precaução, pode-se escolher quais recursos usar diretamente e quais adaptar à realidade da ópera.
A primeira técnica a mencionar é a construção da sua caixinha de emoções. Imagine-se um pintor que, para pintar seu personagem numa tela em branco, precisa de uma diversidade de tintas. Essas tintas serão as suas emoções, guardadas dentro da sua caixinha. Ou seja, é necessário criar uma biblioteca de emoções, signos corporais, símbolos de comunicação, etc. Uma biblioteca pessoal que possa ser consultada todas as vezes em que você for interpretar uma emoção em cena. Essa caixinha pode ser realmente física com escritos, desenhos, fotos, etc ou apenas racionalizada na sua mente.
“O importante é você se habituar a perceber em vez de apenas olhar!”¹
Para isso, acostume-se desde já, e até o fim da sua vida, a observar o mundo à sua volta e a si mesmo. Ao caminhar na rua, observe as impressões que transmitem as pessoas com quem você cruza, e após observar isso, perceba o que foi que causou essa impressão (na maior parte das vezes sem ter acontecido nenhuma troca de palavras). Por exemplo, ao cruzar com uma pessoa que passa a sensação de ser solitária e triste, tente identificar qual era a forma corporal que ela possuía e, tendo isso claro, registre na sua caixinha de emoções. Observe, por exemplo, a foto ao lado. Neste caso, a pessoa está com a cabeça baixa, o peito fechado e uma das mãos apoiada de forma mole em seu rosto.
Além da observação das pessoas pelo mundo afora, não deixe de fazer o mesmo quando tiver contato com uma obra de arte, desde um quadro até um filme, ou mesmo ao navegar na internet. Cultive o hábito de observar quais são os símbolos de comunicação não verbal que o cercam.
“Desde tempos imemoriais, usamos símbolos – mensagens sintéticas de significado convencional. São como ferramentas especializadas que a inteligência humana cria e procura padronizar para facilitar a sua própria tarefa – a imensa e incansável tarefa de compreender.
A característica dominante do símbolo é fugir da palavra ou frase, escrita por extenso. Frase já é grupo de símbolos (palavras), por sua vez também compostas de símbolos (letras) de fugazes vibrações sonoras. E tudo isso sujeito a um código gramatical de origem empírica e lastrado com a inevitável imprecisão semântica, especialmente a deterioração do significado percebido através de gerações.” ¹
Outro exercício importante para a construção da sua caixinha é o de tentar diferenciar emoções. Quanto maior o número de emoções que a sua caixinha tiver, maior a gama de cores que você terá para pintar seu personagem e mais rico ele ficará. Na ópera, é muito comum que determinada classificação vocal cante sempre papéis parecidos entre si e um dos riscos que isso traz é o de que todos acabem ficando iguais. Uma gama ampla de cores lhe dará material suficiente para diferenciá-los. Faça uma lista com todas as emoções de que você se lembra e procure definir para você mesmo quais são as diferenças de cada uma.
“Quanto mais ampla for a sua memória emocional, mais rico será o seu material para a criatividade interior.”²
A auto-observação também é essencial para o enriquecimento da sua caixinha. Stanislavsky, em seu livro A Preparação do Ator, dedica um capítulo inteiro à Memória das Emoções, que é como ele denomina a técnica de se auto-observar e registrar quais as consequências das emoções no indivíduo como um todo. Quando o conteúdo que está em sua caixinha veio da auto-observação, costuma ser mais fácil utilizá-lo, pois, além da observação mental, existe uma vivência prévia dessa emoção no seu corpo para guiá-lo.
“Se tiverem matéria emocional assim tão viva e fácil de despertar acharão simples transferi-la ao palco e representar uma cena análoga à experiência que tiveram na vida real…” ²
Todas as técnicas utilizadas para enriquecer a sua caixinha podem e devem ser praticadas para o resto da vida, aumentando cada vez mais com o passar dos anos esta sua biblioteca.
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