Hoje eu vou escrever sobre “apoio”, um dos conceitos mais usados no canto e também dos mais confusos, que chega a ser muitas vezes enigmático para muitos estudantes (e até profissionais) de canto.

Muitas vezes ouvi discussões infindáveis sobre como cada um usava seu “apoio”, algumas delas chegando inacreditavelmente a acabar com amizades de anos (afinal todo cantor é, digamos, intenso também na sua vida pessoal, hehe). Eu levo as coisas muito ao pé da letra (heranças portuguesas…. ) e sempre me incomodei muito com a palavra “apoio” (ou mesmo “appoggio” para quem prefere usá-la em italiano) e mais ainda com a pergunta “como você usa seu apoio?”. A primeira imagem que me vem à minha cabeça ao ouvir a palavra “apoio” é a de uma pessoa andando com uma bengala, de alguém que não consegue se manter ereto sozinho e por isso usa a bengala como ajuda. Com a expressão “usar o apoio” a coisa piora e já imagino Chaplin em suas diversas poses com a bengala usada das formas mais diversas.

Claro que a palavra “apoio” hoje em dia está totalmente arraigada na pedagogia do canto, mas não acho que o uso dessa palavra seja interessante e por isso não a uso. Não podemos, porém, ignorar os conceitos ligados à ela, e é muito importante para um cantor entender o conceito de “voz apoiada” , principalmente em relação à avaliação do som que se está ouvindo, tanto quando estamos na posição de ouvintes (seja a gravação do nosso próprio som ou o som de outra pessoa) quanto na posição de ouvidos (quando alguém usa o termo para se referir ao som que ouviu de você).

Temos a sensação de “voz desapoiada” quando escutamos, por exemplo, um som que nos passe a sensação de fragilidade (na emissão e não na interpretação, importante que essa diferença fique clara), de falta de sustância (que também não seja confundida com volume),  de inconstância (em timbre e/ou em afinação), etc. Como sensações são coisas pessoais, podem existir diversas outras imagens tentando explicar o que se ouviu no som  para explicar a sensação de “voz desapoiada”, mas com estes exemplos é possível delimitar o assunto.

Obviamente eu tenho que usar uma palavra para trabalhar essa qualidade de uma voz e a palavra que uso é sustentação: ter um som sustentado, com seus músculos sustentar sua produção sonora, criar uma “coluna de ar” que sustente sua voz. Esse termo me parece semanticamente mais construtivo, pois me passa a sensação de fortes colunas sustentando belíssimos templos gregos (uma imagem muito mais interessante para o som que pretendo ensinar do que o de uma pessoa toda torta sobre uma bengala, não acham?).

O manual de anatomia Grays Anatomy fornece a seguinte explicação com relação aos músculos que participam do processo de expiração forçada (sim, no canto a expiração é forçada em relação ao seu processo natural para que se adeque ao nosso controle, nunca se esqueça que o canto não é algo natural):

“Forced expiratory actions are performed mainly by the flat muscles (Obliqui and Transversalis) of the abdomen, assisted also by the Rectus.”¹

São exatamente esses músculos (os oblíquos, os transversais e os retos) os responsáveis pela sustentação da voz, quando eles empurram constantemente o ar para fora de forma controlada.

Compreensão Mental:

Quem sustenta nosso som é nosso ar. Para isso é necessário formar uma “coluna de ar” que seja forte e firme, na qual o canto será sustentado.  Duas características essenciais devem ser cuidadas para que a “coluna de ar” possa sustentar o seu canto: quantidade e pressão. Seguindo a imagem da coluna grega, imagine que a pressão do ar dará a circunferência e que a quantidade dará a altura dessa coluna. Essas duas características podem (e devem) oscilar durante o canto, produzindo assim as dinâmicas sonoras, mas deve-se manter um mínimo constante, já que sem ele o teto do templo vocal desmoronará. Para o canto lírico solista este mínimo, tanto da pressão quanto da quantidade do ar, é muito alto em relação a outros tipos de canto (popular, canto coral, belting, etc).

Simplificando para esse estudo, assumirei que regulamos a pressão do ar através da abertura ou fechamento das costelas e a quantidade do ar através dos músculos abdominais. O movimento da sustentação inclui  as costelas sempre abertas ao menos na sua “potência” mínima e a movimentação tônica dos músculos oblíquos, transversais e retos da posição totalmente relaxada, usada na inspiração passiva, até a sua contração máxima com o abdominal totalmente recolhido para dentro e para cima. Importante ressaltar que a sustentação é feita de um movimento contínuo e constante desses músculos abdominais.

“La colonna d’aria deve essere costante e continua: solo così il suono potrà essere sostenuto o, come si dice, “portato dal fiato”.” ²

E o diafragma? O famoso “músculo da respiração”? O diafragma será manipulado exatamente por todas essas musculaturas que possuem direta relação com ele (abdominais, costais e intercostais) pois sua enervação neural é feita quase totalmente dentro do sistema autônomo, que é aquele controlado automaticamente e não por nossa vontade própria. Portanto, controlaremos o músculo diafragmático, do qual não possuímos total controle neural, pelos músculos diretamente ligados a ele, que controlamos totalmente.

Compreensão Física:

A primeira coisa que temos que compreender fisicamente é o fato de que conseguimos mover nossos músculos respiratórios independentemente da presença ou movimentação do ar em nossos pulmões, como expliquei no post sobre o Ataque do Ar. Para isso, o exercício da apneia é ideal.

O próximo ponto é desassociarmos a movimentação das costelas da movimentação abdominal. Isso depende totalmente de coordenação, que só vem com muito treino (e no começo, claro, parecerá impossível, do mesmo jeito que um instrumentista treina incessantemente para que seus dedos mínimo e anelar sejam totalmente independentes). Um exercício que pode ser feito independentemente do tempo que se tenha para estudar é o de, durante suas atividades diárias normais, abrir a sua costela e deixá-la aberta, deixando os abdominais relaxados e livres para se movimentarem durantes as fases da sua respiração. Ou seja: passe um dia inteiro mantendo suas costelas abertas e seu abdômen relaxado. Este exercício, além de fortalecer os músculos responsáveis por manter suas costelas abertas, ajuda muito na desassociação.

Este exercício também é muito útil para o nosso próximo passo na compreensão física da sustentação: constatar a força que seus músculos possuem. A força muscular da região abdominal, costal e intercostal é totalmente independente, sofrendo grande influência de todas as atividades físicas que já realizamos até esse dia de estudo e também da sua conformação pessoal física e genética. É importante avaliar em que estado estão seus músculos para poder treiná-los na direção de ter músculos fortes, capazes de executar todos os exercícios de respiração propostos sem sofrimento. Existem diversos exercícios específicos para esse fortalecimento*.

Com músculos independentes e fortalecidos pode-se, finalmente, aprender a formar a coluna de ar com eles. Saia da postura totalmente relaxada da inspiração passiva e vá, em um movimento contínuo sem pausas ou soquinhos, empurrando sua musculatura do períneo, oblíqua e transversal e por último a do reto abdominal (apenas os inferiores) para dentro e para cima (como se estivesse apertando uma pasta de dente para extrair todo o seu conteúdo). Para isso é necessário encontrar no seu corpo essas musculaturas. Para a identificação do períneo leia os exercícios propostos aqui. Para encontrar seus oblíquos ache primeiro sua crista ilíaca (a ponta dos ossos da bacia, normalmente o local onde você apoia seus mindinhos ao colocar as mãos na cintura) aproximadamente dois dedos acima dela você poderá sentir esta musculatura. Os transversos são músculos mais fundos e de difícil percepção mas que trabalham juntamente com os oblíquos, portanto, foque neles. E os retos são os músculos do “tanquinho” e ficam na parte da frente do abdômen, considero os retos abdominais inferiores os 4 “quadradinhos” do tanquinho que ficam embaixo, os 4 de cima (superiores) devem permanecer relaxados, concentre sua atenção na região do umbigo para ativá-los corretamente. É importante que a ativação muscular siga a ordem acima descrita, pois, se o reto entrar antes dos outros músculos, haverá uma tensão que impedirá o resto da movimentação e que será prejudicial para a fonação também, com um efeito semelhante ao que ocorre quando tomamos um soco na barriga. Para esse treino, recomendo o exercício da Sustentação (o nome diz tudo) com 1 movimento e com mais de 1 movimento e depois vocalises que foquem na sustentação.

Compreensão Emocional:

Emocionalmente é comum experimentar nesse trabalho sensações de aflição e/ou de falta de ar. Como expliquei no post sobre inspiração passiva, é necessário haver uma compreensão emocional de que muitos “avisos de emergência” que chegam até o cérebro são equivocados e exagerados. O exercício da apneia é recomendado para esse treino.

Nessa fase também é muito importante a aceitação do processo de aprendizado do próprio corpo, sem “brigas”. Ficar brigando com o corpo porque ele não é forte e/ou coordenado o suficiente não ajudará nesse estudo. Foque sua energia no seu progresso, no que virá com o treino e não no que não está dando certo naquele momento. Lembre-se de que treinar controle corporal extremo é muito difícil e um processo demorado, e que a resposta física virá gradativamente, melhorando um pouquinho a cada dia.

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¹“Ações forçadas de expiração são realizadas principalmente pelos músculos lisos (oblíquo e transversal) do abdômen, ajudados também pelo reto.” (tradução livre) -GRAY, F. R. S. Henry. Gray’s Anatomy. New York: Fall River Press, 2012.
²“A coluna de ar deve ser constante e contínua: só assim o som pode ser sustentado ou, como se diz, “portato dal fiato”.” (tradução livre) -SILVESTRI, Rosina Crosatti. Canto Bene: Il manuale prattico per imparare le tecniche del canto. Milano: Rugginenti Editore, 2003.

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