Hoje aprofundarei o tema das circunstâncias na criação do personagem que mencionei no post da semana passada, sobre o uso da imaginação na interpretação.

maxresdefault (1)Circunstâncias, no processo de criação de um papel, são as condições que cercam o personagem, condições imutáveis e que devem estar presentes durante a performance. Para facilitar o estudo eu dividirei a análise das circunstâncias em 3 tipos: 1. Circunstâncias no libretto e na partitura, 2. Circunstâncias da montagem e 3. Circunstâncias a serem preenchidas. Durante uma montagem, no caso de existirem circunstâncias contraditórias entre o primeiro e o segundo tipo, é importante que as que foram propostas para a produção em questão sejam consideradas as válidas. Você poderia pensar então que o estudo do primeiro tipo de circunstâncias é um desperdício de tempo, já que as da montagem serão sobrepostas a elas, mas com certeza não é o caso, uma das situações mais comuns na carreira de cantores de ópera é a performance do mesmo papel em diferentes tipos de montagens, onde o segundo tipo de circunstâncias será cada vez de uma forma. Na maioria das vezes os diretores mantém basicamente o primeiro tipo de circunstâncias.

“Esta expressão [circunstâncias dadas] significa (…)  o enredo da peça, os fatos, eventos, tempo e local da ação, condições de vida, a interpretação do ator e do diretor, a encenação e a produção, os cenários,  trajes e adereços, iluminação e sonoplastia, enfim, todas as circunstâncias dadas a um ator, que deve levá-las em conta ao criar seu papel. [O mágico] Se é o ponto de partida, as circunstâncias dadas são o desenvolvimento.” ¹

Imagine que as circunstâncias dadas são as “tintas” usadas para pintar o mundo no qual viverá seu personagem. Para isso, algumas “tintas” são essenciais e para encontrá-las o uso de um questionário sobre a sua personagem (em primeira pessoa) pode ser muito útil:

  • Quem sou eu?
  • Quando?
  • Onde?
  • O que me cerca?
  • Quais meus relacionamentos?
  • Qual minha família?
  • De onde eu vim?
  • O que acabou de acontecer?
  • O que eu espero que aconteça num futuro imediato?
  • Quem dos outros personagens, presentes ou apenas mencionados na ópera, eu já conheço e qual meu relacionamento com eles?

41211169-4702-41d4-84af-a7f0a2ec3d40Ao responder essas perguntas você deve ser o mais detalhado possível. Por exemplo, na questão quando? procure uma resposta ampla, com vários detalhes, se perguntando: Que época? Que ano? Que mês? Que dia? Que período do dia? Que horas? Que estação do ano? Que período histórico? Quanto tempo eu tenho? etc… E também o que essas condições temporais causam no personagem, como elas o afetam (por exemplo: no inverno aumenta o sentimento de solidão). A análise das circunstâncias dadas deve ser feita de cena por cena, pois algumas circunstâncias podem ter mudado ou surgido entre uma cena e outra. A passagem do tempo entre um ato e outro, por exemplo, muda as respostas da pergunta quando?.  Para responder a essas perguntas, use os dados oferecidos pelo libretto, pela partitura e pelo diretor de cena. Para aquelas para as quais não hajam ainda respostas, crie circunstâncias que preencham essas lacunas, lembrando, claro, que nenhuma delas pode conflitar ou contradizer as já existentes.

“A busca pelas circunstâncias passadas e imediatas tem de ser feita não apenas para o início da peça, mas para ‘sua’ vida durante e entre cada ato e cada cena, a não ser que a ação no palco seja contínua.”  ²

1) Circunstâncias no libretto e na partitura

No post sobre reunir dados sobre o seu personagem mencionei diversas formas de coletar informações sobre o seu personagem, principalmente aquelas presentes no texto (libretto) e na partitura. Além dessas, existem muitas circunstâncias oferecidas pela música também: a melodia, o ritmo, a evolução harmônica etc são elementos cheios de conteúdo e que não podem ser ignorados na busca pelas circunstâncias dadas.

“As circunstâncias dadas pelo autor da peça devem ser desentranhadas de cada palavra que ele pôs no papel. Elas podem determinar ou condicionar nossos conflitos, suprir determinar ou condicionar nossos conflitos, suprir nossas motivações e especificar a natureza de nossas ações.” ²

2) Circunstâncias da montagem

0-a1acircusnstaEm uma montagem de ópera o diretor de cena pode modificar algumas das circunstâncias apresentadas no item anterior. Na ópera “La Traviata”, de Verdi, por exemplo, a partitura indica “em torno de 1850”, porém são muito comuns montagens em que a história é transportada para outras épocas.  Portanto em cada montagem é importante saber quais as escolhas do diretor que interferirão nas circunstâncias do seu personagem. Normalmente o diretor apresenta a sua proposta para a ópera em um dos primeiros encontros do elenco, mas caso ele não o faça ou sua apresentação não seja suficiente, não deixe de perguntar a ele.

“As circunstâncias dadas são circunstâncias apresentadas geralmente por um texto teatral, que envolvem a personagem e a acompanham em seu percurso, em seu existir. Devido à distância, em termos experienciais, entre o ator e a personagem, pode-se utilizar, no processo de construção, de circunstâncias análogas àquelas presentes no texto. Por circunstâncias dadas, Stanislávski entende também aquelas que envolvem a concepção da encenação: figurinos, cenários, iluminação…” ³

3) Circunstâncias a serem preenchidas

Essas são as respostas que devem ser criadas por você mesmo. Para isso, dê asas à sua imaginação, nunca esquecendo, claro, que as circunstâncias criadas por você não podem de forma alguma conflitar ou contradizer as outras já dadas pelo primeiro e segundo tipo de circunstâncias. Um material muito útil para essa criação é o material que você já reuniu na sua caixinha de emoções. Quanto mais detalhadas forem essas circunstâncias, mais força elas terão em cena e ajudarão aos próximos passos no estudo/criação do seu personagem. Lembre-se que você quer criar um ser humano (ou outro ser fantástico) complexo e vivo.

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¹ STANISLAVSKI, C. – Manual do Ator – 2a edição – São Paulo: Martins Fontes, 1997.
² HAGEN, U. – Técnica para o Ator – A arte da interpretação ética / Uta Hagen com Haskel Frankel  – São Paulo: Martins, 2007.
³ BONFITTO, M. – O Ator Compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislávski a Barba – 3a edição  – São Paulo: Perspectiva, 2013.