No final de semana passado debutei como Elle na ópera ” La Voix Humaine” de Poulenc. Esta é uma ópera permeada de uma carga dramática muito intensa, que chega a um ápice de emoção no final, muitos leitores foram assistir e me perguntaram como eu faço para chorar e cantar ao mesmo tempo, então no post de hoje falarei sobre isso.
Ensinarei uma técnica para compatibilizar o choro com o canto que desenvolvi sozinha, fazendo experimentos e adaptando vários exercícios que aprendi no teatro para aplicar ao canto. Não sou, porém, a única cantora no mundo a dominar esse recurso (talvez eu seja a primeira a escrever sobre isso, não encontrei nenhuma bibliografia sobre o assunto ainda – se alguém conhecer alguma por favor me indique), muitos outros cantores desenvolveram técnicas similares e também são capazes de chorar enquanto cantam sem, claro, ter perdas na qualidade vocal. Assistam o video abaixo com Natalie Dessay no papel de Amina da ópera La Sonnambula de Bellini e reparem que, graças ao close, durante os aplausos é possível visualizar as lágrimas em seu rosto:
Antes de mais nada, gostaria de esclarecer que essa é uma técnica muito complexa que só deve ser tentada por quem está já em nível avançado de domínio do canto, pois requer uma grande capacidade de controle corporal.
Não falarei hoje sobre técnicas para a produção dos sentimentos necessários para desencadear o choro (e nunca falarei sobre técnicas artificiais ou químicas para chorar, como o cristalzinho japonês, não acredito que o choro sem uma verdade emocional seja uma forma de interpretação válida). Embora existam muitas técnicas de teatro específicas para isso (uma dessas técnicas é a reconexão com situações passadas de sua própria vida, como expliquei no post A Caixinha de Emoções), hoje vou me ater apenas aos recursos que permitem que o choro não atrapalhe a execução do bom canto.
1) Descubra quais são as consequências do choro perniciosas ao bom funcionamento da sua voz
Cada corpo é um corpo e cada emoção também é uma emoção, o primeiro passo é tomar consciência e, durante seu treino, deixar a emoção correr livremente na direção do choro enquanto canta (para esse estudo escolha a peça que mais te emociona, pois será mais fácil avaliar lidando com emoções intensas). Ao fazer isso, observe atentamente quais são as consequências físicas que podem, no seu caso específico, prejudicar o bom funcionamento da voz;
Essas consequências físicas costumam ser: respiração entrecortada, contração dos músculos da face e contração de laringe (sensação de nó na garganta). A produção de lágrimas em si não é nada prejudicial ao canto, pelo contrário, pode até ajudar a obter uma lubrificação extra das mucosas internas.
2) Desative cada uma dessas consequências
Para cada consequência será necessária uma ação específica no intuito de desativá-la.
- Respiração entrecortada: é a consequência mais fácil de desativar. Para isso, mantenha o controle sobre a sua respiração, como vimos em post anteriores (Inspiração Passiva, O Ataque do ar, Apoiando quem?, e Rearticulação de costelas), não permita que o desenvolvimento da sua emoção altere sua capacidade de controle respiratório. Para dominar isso, é claro, é necessário treino de coordenação, para que uma coisa não interfira na outra;
- Contração dos músculos da face: para desativar essa consequência é necessário separar especificamente qual músculo da face que está sendo contraído está atrapalhando sua emissão, depois de identificá-lo treine o desenvolvimento da emoção junto com o canto focando para que esse músculo se relaxe. Toques suaves nele ajudarão nesse treino;
- Contração da laringe: essa consequência é a mais perigosa da junção do canto com o choro, pois não só ela atrapalha a qualidade do som drasticamente como cantar por cima dessa contração não é nada saudável, pode machucar mesmo, inclusive causando rouquidão (por isso mesmo separe dias distantes de apresentações para desenvolver essa técnica). Para desativá-la é necessário interromper o reflexo que dá o “nó na garganta”. Observe que segurar uma emoção aumenta o reflexo de contração da laringe, portanto deixe-a fluir livremente para, a partir disso, treinar o controle desse reflexo. Lembram-se da brincadeira do “Não pisca”, quando uma pessoa fica olhando para os olhos da outra e ganha quem demorar mais para piscar? Essa brincadeira é um grande treino de controle de reflexos, o ato de piscar é um reflexo, assim como o nó na garganta, e para conseguir dominá-lo deve-se fazer o mesmo que na brincadeira do “não pisca”, concentrar-se em manter a posição relaxada e dar comandos constantes de “não contraia”. Forçar um relaxamento também será ruim, portanto fique atento para apenas treinar a manutenção da posição relaxada necessária para o bom canto. É um treino demorado, porém perfeitamente possível. É importante ficar atento para o fato de que, como na brincadeira do “não pisca”, existe um limite pessoal para o quanto é possível segurar o reflexo. Conhecendo o seu limite, equilibre o ápice da sua emoção para não correr o risco de não conseguir segurar e perder totalmente o controle.
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