O assunto de hoje chega a ser um dos preferidos do mundo do canto, seja dos iniciantes que costumam perguntar ansiosos na primeira aula da vida qual a sua classificação, seja dos profissionais e experientes comentando em rodas de conversas quem deveria/poderia estar cantando esse ou aquele papel.

Para a maioria dos tipos de canto apenas a primeira classificação geral será suficiente, mas quando falamos de canto operístico, a classificação vocal se torna de extrema importância por orientar a escolha do repertório a se cantar.

Classificação Geral – Nome

Essa classificação geral é feita da seguinte maneira:

  • Vozes agudas: Soprano (feminina) e Tenor (masculina);
  • Vozes médias: Mezzo-soprano (feminina) e Barítono (masculina);
  • Vozes graves: Contralto (feminina) e Baixo (masculina).

Usando as seguintes características gerais da voz, segundo Dinville¹:

  • Timbre pessoal (leia mais sobre isso aqui);
  • Comprimento e espessura das pregas vocais – alguns otorrinolaringologistas especialistas em voz conseguem classificar uma voz avaliando o tamanho e a forma das estruturas do aparelho fonador de um cantor através da laringoscopia. Quanto mais experientes forem esses médicos, maior a chance de acerto (lembram-se dos otorrinos que eu recomento? Leia neste post), porém eu já os indaguei várias vezes sobre onde achar as referências sobre isso… Livros? Artigos? Nada. A razão para que não exista literatura científica sobre isso é que a natureza é muito mais criativa do que podemos imaginar e a quantidade de variações e combinações entre essas variações é muito grande para tornar possível um estudo que defina realmente como é o aparelho fonador de uma determinada voz. Tudo que temos então são generalizações, como: pessoas de baixa estatura, com ossatura pequena, e pregas vocais curtas e estreitas normalmente possuem vozes mais leves,  pessoas com pescoços largos e laringe proeminente normalmente possuem vozes graves, e etc. Como com toda generalização, esteja preparado para as inúmeras exceções.
  • Forma e volume das cavidades de ressonância – os bons otorrinos avaliarão, para sua sugestão de classificação vocal, além das pregas vocais em si e da laringe, todas as cavidades de ressonância;
  • A tessitura (útil) e a extensão – a tessitura útil é a região entre a mais grave e a mais aguda nota que um cantor consegue cantar com qualidade e eficiência vocal (notas que saem de vez em quando com certeza não entram como tessitura útil). Já a extensão engloba todas as notas que um cantor consegue produzir sem levar em conta a qualidade e a eficiência vocal;
  • Locais das passagens –são as notas onde uma voz passa de um registro para outro (no post sobre registros tem até uma tabelinha, dê uma olhada aqui).

A divisão geral das vozes avalia diversas características de uma voz segundo suas variações anatômicas pessoais e seu comportamento, mas podemos perceber que a maioria desses itens sofrem interferência direta da capacidade técnica de um cantor. Quando falei sobre timbre expliquei sobre a construção técnica de um timbre vocal, principalmente no caso do canto lírico. Mesmo no que se refere às variações anatômicas analisadas pelos médicos, quando não se sabe usá-las o resultado sonoro será totalmente outro, além de termos que contar com o desenvolvimento dos músculos e até de alguma estruturas usadas no canto depois de anos de treino. (Minha primeira otorrino, sempre que me fazia uma laringoscopia, se divertia comentando como minhas pregas vocais eram “marombadas”).

A relação da tessitura útil com a técnica vocal me parece muito óbvia para ser explicada, afinal um som só terá qualidade e eficiência se produzido com a técnica correta, mas com a extensão vocal talvez não seja tão evidente: mesmo um som produzido sem qualidade também terá interferência direta do nível técnico do cantor e do desenvolvimento muscular (tanto de força como de flexibilidade, da mesma forma que os músculos do corpo podem ganhar ou perder força e alongamento, as pregas vocais também podem). Por fim, as passagens de registro podem ser alteradas por diversas razões, seja em função da técnica, por uso anterior, até imitação de alguém. Eu sempre digo que nenhuma voz chega “virgem” a uma aula de canto,. Nem que seja na festinha de aniversário da mãe, a pessoa já utilizou a voz para cantar e esse uso pode ter criado de forma inconsciente vícios e ou mudanças, inclusive no posicionamento das passagens de registro.

Portanto, a classificação vocal correta só pode ser feita depois que um cantor atingiu um certo nível de controle vocal. Isso não quer dizer que algumas características não possam ser percebidas antes e não possam indicar um caminho, mas é importante ficar atento a classificações vocais precoces, pois estas podem atrapalhar tanto a evolução de uma voz quanto fazer pirar a cabecinha do aspirante a cantor.  Infelizmente ainda é muito comum que um cantor passe por diversas classificações até realmente se achar e o problema pra mim está nessa classificação precoce e mais ainda em acreditar que essa classificação precoce é algo definitivo. Então, para quem já ficou com vontade de marcar uma consulta com um desses otorrinos para a semana que vem para “saber” sua classificação: pode cancelar a ligação e ligue para seu professor de canto marcando mais uma aula!

Subclassificação – “sobrenome”

Usando os mesmo critérios da classificação geral, a subclassificação geral é dividida em:

  • Leggero – voz que tem por tendência a dinâmica piano, tendo dificuldades para executar dinâmicas em fortíssimo, costuma ter timbre suave, leve, delicado, cristalino, etc.
  • Lírico – a principal característica dessa voz é a capacidade de transitar por todas as dinâmicas, tendo dificuldade em se manter apenas em extremos como apenas no pianíssimo ou no fortíssimo, costuma ter timbre romântico, envolvente, etc.
  • Dramático – voz que tem por tendência a dinâmica forte, tendo dificuldades para executar dinâmicas em pianíssimo, costuma ter timbre metálico, escuro, agressivo, etc.

Os principais pontos, na minha opinião para entender em qual classificação/papéis sua voz se enquadra são:

  • Conforto vocal -lembrando que estamos falando de um cantor com a técnica totalmente resolvida. Se ao cantar uma música existe desconforto vocal é um grande sinal de que esse papel não se encaixa na sua voz;
  • Saúde vocal – diretamente relacionado com o ponto acima, se sua voz perde saúde ao cantar um papel, mais um grande sinal de que ele não se encaixa na sua voz (leia mais sobre as sensações esperadas e não esperadas ao cantar aqui);
  • Maior rendimento – quando um papel realmente se encaixa na sua voz ele demonstra o melhor que ela possui, aumentando consideravelmente o rendimento da sua execução.

Esses três pontos juntos aliados à técnica totalmente dominada farão com que cada cantor saiba, ao cantar um papel, dizer do ponto de vista de dentro do seu instrumento se aquele papel é ou não adequado para a sua voz. E como o mundo não é apenas em preto e branco, existirão várias categorias entre o “perfeito para a minha voz” e o “de jeito nenhum para a minha voz”.

Outra questão que deve ser levada em conta na aprovação ou não de um papel para a sua voz é: como ele será executado, em que teatro? Com que orquestra? Com que elenco? Com qual afinação?  Às vezes um papel que em um teatro grande seria inviável uma orquestra menor se torna possível…..

Subclassificação detalhada

Sempre lembrando da necessidade de esperar o desenvolvimento técnico, na classificação e na subclassificação geral temos a maior parte dos itens avaliados envolvidos diretamente com uma variação anatômica particular. Falando de maneira coloquial, estamos tratando da voz que Deus te deu, aquela com a qual você nasceu. Já quando falamos em subclassificação, além de particularidades anatômicas, temos que levar em conta o mercado de trabalho.

Quando a maioria das óperas de repertório foram compostas, elas foram compostas para cantores específicos e para suas características vocais particulares. Naquela época, inclusive, o conceito de classificação vocal era algo muito amplo: Bellini escreveu para Giuditta Pasta os papéis títulos de Norma, La 

Sonnambulla e Beatrice di Tenda² e não para um soprano dramático coloratura ou outra denominação que se use hoje em dia. Naquela época eram poucos os cantores e não era necessário um nome, muito menos um sobrenome, de classificação vocal, para que o compositor, o produtor ou o diretor artístico pudessem entender como era aquela voz, eles conheciam as vozes e as nomeavam pelo próprio nome do cantor.

Hoje em dia tudo é diferente e existe uma necessidade de comunicação entre cantores (que. comparando com um mercado, seriam as mercadorias) e os contratantes (os compradores dessas mercadorias). Um diretor artístico não possui tempo hábil para ouvir todas as cantoras do mundo quando está selecionando quem ele contratará para cantar determinado papel, ele precisa fazer uma triagem e pra isso se usa a classificação vocal. Ao anunciar que para o papel de Gilda (do Rigoletto de Verdi) o contratante deseja uma voz de soprano leggero, ele está definindo um grupo de mulheres que possuem características vocais que se enquadrem nessa “caixinha”.

“Die elementare Nomenklatur der Singstimmen: Sopran, Alt, Tenor und Baß mit ihren Zwischenstufen Mezzosopran bei den Frauen – und Bariton bei den Männerstimmen charakterisiert lediglich die Stimmlagen. Für die Bühnenpraxis erfahren die einzelnen Stimmgattungen eine Aufspaltung, wobei die Stimmen hinsichtlich ihrer Qualität, ihres Umfangs und ihres Volumens sowie den gesanglichen und darstellerischen Anforderungen entsprechend in Unterabteilungen zusammengefaßt werden, die man als Fächer bezeichnet.” ³

Além das características vocais, outras características devem ser levadas em conta ao se nomear parte de uma classificação vocal (ou de um fach, termo alemão para isso que engloba todas as características descritas por Kloiber acima). Conforme suas capacidades vocais (tessitura útil, habilidade ou não de fazer coloraturas, ou frases em legato, dinâmicas, etc), seu timbre, seu volume, seu desempenho cênico e em algumas situações seu porte físico. Entendendo que essa subclassificação é uma técnica de venda, uma forma de se comunicar com o seu contratante, fica fácil entender como, por exemplo, o mesmo cantor canta determinado fach em um país e outro em outro. Em situações assim, a voz (variações anatômicas + técnica) permite que o cantor se venda em mais de um fach e, dependendo do gosto do freguês, ele vai colocar uma das subclassificações possíveis dentro da sua própria voz.  Quando um cantor deixa de pertencer a um fach e vira apenas seu próprio sobrenome, como Callas, Pavarotti, Netrebko, etc, ele chegou a um momento da carreira onde os contratantes já o conhecem e não precisam mais de uma classificação vocal para enquadrá-lo. É muito comum inclusive, nessa fase da carreira, que os cantores cantem papéis que não fazem sentido um com o outro, dentro de fach nenhum.

Eu não vou colocar aqui uma lista de possibilidades de fachs, pois é importante sempre entender o gosto do freguês (e muitas vezes termos usados por quem possui esse gosto) mas dentro do post sobre o livro do Kloiber³ disponibilizei a lista que está no livro para vocês se divertirem um pouco, lembrando que este livro é sobre o gosto alemão de ópera e não do mundo inteiro. Papéis ali descritos podem fazer parte de outras classificações vocais e outras classificações podem existir também, como por exemplo a subclassificação Spinto que na Itália é usada para designar uma voz aguda (soprano ou tenor) com capacidade de furar uma orquestra em tutti em um agudo em fortíssimo mas que possua muitas características de lírico e não seja um dramático.

Portanto, escolher o repertório corretamente é uma questão de saúde, conforto, maior rendimento e construção de carreira para um cantor.

Nunca imite um movimento de outro cantor, cada instrumento é diferente

e pode ter diversas alterações devido a conformações musculares próprias.

Para ter aulas de canto com Tati Helene entre em em contato aqui.

¹ DINVILLE, Claire. Os distúrbios da Voz e sua reeducação – tradução Denise Torreão – 2a edição – Rio de Janeiro: Enelivros, 2001.
² ECHEVARRÍA, Nestor. Historia de los Cantantes Líricos – 1ª edição. Buenos Aires: Editora Claridad, 2000.
³ “A nomenclatura elementar das vozes: soprano, alto, tenor e baixo, com as vozes intermediárias: mezzo-soprano na voz feminina e barítono na voz masculina, caracteriza apenas o registro vocal. Para a prática nos palcos, os tipos individuais de voz adquirem uma divisão, com as vozes em termos de sua qualidade, seu tamanho e volume, bem como as habilidades vocais e o desempenho cênico sendo subdivididas em Fächer.” (Tradução livre) – KLOIBER, R., KONOLD, W. e MASCHKA, R. – Handbuch der Oper – 13a edição – München: Bärenreiter, 2011.

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