Essa semana uma aluna me trouxe um problema, algo que ela está enfrentando nos ensaios de uma nova produção de ópera: o diretor cênico da montagem da qual ela está participando marcou uma corrida pelo palco logo no meio da ária de sua personagem e, mesmo tendo um excelente preparo físico, ela estava perdendo muito a qualidade ao cantar. Foi a primeira vez então que ensinei a técnica que explicarei no post de hoje. Eu a uso com frequência no palco mas, em todos os meus anos de ensino, nunca tinha me deparado com um aluno nessas condições. Me dei conta de quanto essa técnica é importante e resolvi compartilha-la com vocês.

As produções das óperas estão cada vez mais dinâmicas (Graças a Deus!!) e dominar a técnica explicada abaixo é uma mão na roda para manter a qualidade do canto e fazer os movimentos intensos exigidos pelas produções mais modernas.

Antes de entrar na técnica em si, acho muito importante reiterar, mais uma vez, que um cantor lírico deve ter um ótimo condicionamento físico como um atleta de alto rendimento (o nome do blog vem exatamente dessa comparação) e que a técnica de hoje não serve para substituir o treino aeróbico e de força que cada cantor deve fazer para se manter apto a executar todos os movimentos necessários em cena e não perder nenhuma qualidade para realizá-los.

A curva de queima

Essa técnica eu aprendi no curso de Artes Cênicas da USP com a professora Eudosia Quinteiro (Já falei dela aqui, lembra?) e  está descrita no seu livro Estética da Voz – Uma voz para o ator. Ela ficou arquivada na minha memória até a primeira montagem de ópera em que o diretor marcou uma cena super agitada, com a maior correria, bem antes de começar a minha ária. Nesse dia me lembrei dessa técnica incrível e comecei a aplica-la na ópera com grande sucesso.

Compreensão mental

Quando fazemos um exercício mais intenso, seja correr, pular, dançar, dar estrela, etc., nosso corpo necessita de mais oxigênio e o solicita fortemente. Assim que paramos esse exercício, porém, o corpo continua essa solicitação por um a dois minutos (depende muito da resistência física de cada um, pessoas mais treinadas e condicionadas terão um tempo de recuperação bem menor e vice-e-versa). Esse momento em que o movimento para e a solicitação continua é o momento em que ocorre a respiração ofegante, Quinteiro chama essa situação de curva de queima¹, e ela será a culpada por prejudicar qualquer voz, seja falada ou cantada, que seja produzida nesse período.

A técnica consiste em não permitir que o corpo entre nesta curva de queima através do controle da respiração.

Para isso é necessário manter as inspirações relaxadas e calmas durante e, principalmente ao parar a movimentação física, por um a dois minutos, sem permitir que nenhuma inspiração seja feita com aspiração de ar brusca, como um reflexo. Este é o ponto mais importante dessa técnica: uma única inspiração errada e já era, a curva de queima estará instalada e lá se foi a qualidade vocal, seja cantando, falando ou simplesmente parado. A inspiração deve ser feita de forma controlada, para que se mantenha relaxada até o momento em que seu corpo pare de solicitar mais ar e o desejo de fazer essa inspiração brusca e sugada acabe (lembre-se que esse tempo é em torno de um a dois minutos dependendo da condição física de cada um).

Compreensão emocional

Segurar o desejo (quase insuportável) de inspirar bruscamente não é nada fácil e no início é normal ter a sensação de que isso é impossível e de que se você não inspirar rápido e violentamente o ar vai faltar e você vai acabar desmaiando. O ar não vai faltar porque você não vai parar de respirar, ou seja o fornecimento de ar continuará acontecendo, mas ele será feito de forma calma e controlada. Controlar a agonia gerada pela pressão do organismo para que seja feita essa inspiração brusca é a parte mais difícil desta técnica e requer grande auto-controle emocional para seu domínio.

Importante: não se trata de impedir a entrada e a saída de ar do organismo. Não é parar de respirar. É apenas uma respiração controlada: o ar entra e sai dos pulmões na medida estabelecida pelo reflexo respiratório pessoal, e nada mais que isso.” ²

Compreensão física

Para treinar e dominar essa técnica eu sugiro 3 etapas de treino, sendo necessário que cada uma seja dominada antes de partir para a próxima:

  1. Corra pelo espaço, pule corda ou qualquer atividade intensa, durante o tempo que o deixaria ofegante. Pare e mantenha sua concentração na sua respiração, inspire SEMPRE relaxadamente e tome muito cuidado com o fim de cada expiração porque é nesse momento que o reflexo de inspirar brusco virá com mais força. Se possível use um cronômetro para saber quanto tempo demorou até que seu corpo parasse de exigir essa inspiração brusca. Observe, então, que seu corpo “acalmou” e que não foi necessário ficar ofegante;
  2. Dominada a primeira etapa, repita o exercício, mas agora, ao parar a atividade, respire 3 vezes calmamente e declame um texto, prestando muita atenção ao final de cada frase para que a inspiração seguinte continue sendo calma e relaxada. Continue declamando até chegar ao mesmo tempo medido na primeira etapa sem ficar ofegante (caso fique ofegante ao parar de declamar o texto, isso será sinal de que alguma inspiração no meio do caminho não foi feita corretamente, ou de que será necessário mais tempo de execução do exercício, Se possível meça o tempo novamente no cronômetro e assuma esse novo tempo como parâmetro);
  3. Finalmente, depois de dominadas as duas etapas anteriores, repita o exercício, dessa vez cantando após as 3 respirações calmas. Mais uma vez preste triplicada atenção ao momento do fim de cada frase para que NÃO ocorra uma inspiração brusca, mantenha pelo tempo necessário para evitar a entrada na curva de queima.

Quando tiver alguma cena em que seja necessário usar essa técnica, treine com a movimentação, o texto e por último com a própria música da cena, seguindo essas etapas.

Nunca imite um movimento de outro cantor, cada instrumento é diferente

e pode ter diversas alterações devido a conformações musculares próprias. 

 Para ter aulas de canto com Tati Helene entre em contato aqui.

*Fotos da Ópera Falstaff de Verdi, realizada no Theatro São Pedro (São Paulo) em 2013, com direção cênica brilhante e muito movimentada de Stefano Vizioli.
¹ QUINTEIRO, Eudosia Acuña. A estética da voz: uma voz para o ator. 6ª edição.  São Paulo: Plexus Editora, 2007.
² QUINTEIRO, Eudosia Acuña. A estética da voz: uma voz para o ator. 6ª edição.  São Paulo: Plexus Editora, 2007. (Quinteiro preconiza que todas as inspirações sejam feitas pela medida pessoal mensurada no exercício do reflexo respiratório.)

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