Uma das grandes diferenças entre cantores e instrumentistas é a de que quando um instrumentista vai a uma festa ele deixa seu instrumento em casa bem protegidinho dentro do case,  já os cantores levam seu instrumento consigo em todas as situações da vida e este instrumento reage a cada uma delas.

Eu poderia escrever uma lista de coisas que cantores não podem fazer na busca por preservar seu instrumento (não tomar gelado, não ir a lugares barulhentos e/ou com gelo seco, não beber, não fumar, etc etc e etc) mas, além de achar que todos estão cansados de saber essas coisas, eu não concordo com essa lista, não serei eu a reproduzi-la aqui. Muitas vezes, deixar de se divertir numa festa acaba sendo prejudicial para seu instrumento da mesma forma, só que em outro aspecto que não o físico. Precisamos do corpo saudável e apto para o canto e a interpretação como um todo e não apenas de um físico relaxado.

Não sei se vocês conhecem o jogo simulador The Sims. Aqueles que conhecem e já jogaram terão mais facilidade para entender minha proposta abaixo, e para aqueles que não têm ideia do que seja isso vou explicar brevemente como o jogo funciona: a ideia é simular uma vida, criamos um personagem e vamos controlando o que ele faz em todas as atividades (trabalhar, casar, se divertir, comer, etc). Para isso o jogo cria vários sistemas de controle e um deles (o que nos interessa nesse momento) é o painel de controle das necessidades do Sim (como é chamado o personagem no jogo). Existe um sistema de barras que, preenchidas, ficam verdes; se cheias até a metade ficam amarelas e abaixo disso ficam vermelhas. As cores simbolizam o estado de alerta que você tem que ter com aquela barra em especial. O jogo possui muitas versões e em cada uma a quantidade e os tipos dessas barras se alteram, vejam na figura abaixo um exemplo de como aparecem em uma das versões:

Nesta imagem as barras são referentes a Fome, Banheiro, Energia, Social, Higiene e Diversão e estão todas verdes (as flechinhas vermelhas significam que a barra está sendo consumida e as verdes que ela está sendo recarregada). Com as barras no verde praticamente qualquer coisa que você mandar seu Sim fazer (como estudar para uma prova, lavar a louça, etc) ele vai realizar, mas se as barras estiverem vermelhas ele não conseguirá fazer muita coisa. Para cada ação é necessário um certo nível de preenchimento em certas barras.

Agora que já dei uma noção geral de como funciona esse jogo vou poder usá-lo como analogia para o meu tema de hoje. Vou apresentar a vocês o que eu chamo de “O Cálculo”ou “A Teoria das Barrinhas”.

Muitas vezes nos preocupamos com nosso estado físico para cantarmos, é difícil encontrar um cantor que ainda não tenha sentido a diferença que faz uma noite bem dormida na sua voz. Porém cuidarmos apenas do estado físico não é suficiente, precisamos de capacidade de concentração, de memória, de energia emocional, etc, e essas coisas não se “carregam” apenas com uma boa noite de sono e uma boa alimentação.

Imaginemos, então, que vamos separar nossas necessidades para que nosso corpo esteja em ótimo estado em Barras, como as do jogo. Para começar vou assumir que teremos três Barras essenciais: Mental, Físico e Emocional. Claro que dentro de cada uma se pode criar a subdivisão que quiser, como por exemplo separar a Barra Físico em Fome, Sono e Cansaço Muscular, mas por enquanto pensaremos no macro de apenas 3 barras.

Maria Callas disse em um dos seus master classes na Julliard School em 1971:

“There are only three things one needs to make a career as a singer: concentration, technique and courage.¹” 

Podemos tranquilamente assumir como: ConcentraçãoBarra Mental, TécnicaBarra Físico e CoragemBarra Emocional.

Cada coisa que fazemos na vida consome ou recarrega cada uma dessas Barras de forma diferente e totalmente PESSOAL, por isso o autoconhecimento é a chave de tudo, uma coisa que carrega para mim pode consumir para você ou não ter efeito nenhum.

Por exemplo, se um cantor que é bem festeiro se obrigar a não ir a festa nenhuma, ele provavelmente preservará a sua Barra Físico, mas consumirá bastante a sua Barra Emocional e talvez a Mental também, porque se privar de algo de que se gosta muito sempre tem seu custo.

O primeiro passo então é conseguir entender em que “estado” estão as suas Barras. Pegue uma situação em que você não esteja conseguindo fazer algo (é mais fácil entender quando algo está “faltando” do que quando está “sobrando”), por exemplo, memorizar uma ária. Olhe para dentro de si mesmo e avalie suas condições. Como está o seu Físico? Você está com fome? Sede? Sono? Apertado para ir no banheiro? A parte física é a que estamos mais acostumados a observar, afinal o corpo nos “avisa” que algo está acontecendo e sabemos ler esses avisos desde pequenos. Feita essa avaliação do Físico, observe se alguma dessas alterações pode estar atrapalhando seu objetivo (memorizar a ária). Tenho um amigo, por exemplo, que mal consegue falar quando está apertado para fazer xixi. Caso a causa esteja no Físico, ótimo, você então aprendeu que tal situação física interfere na sua capacidade de memorização, e pode resolver ou evitá-la. Mas, retomando nosso exemplo, vamos pressupor que a causa não estava aí.

Vamos então observar o lado Emocional. Experimente se fazer perguntas como: Estou triste? Feliz? Desesperançoso? Chateado? Com raiva? etc… Depois tente entender o que causou tal emoção. É algo relacionado com sua vida pessoal? Com a profissional? Especificamente com aquela ária? (Costuma ser mais difícil memorizar algo quando não estamos de acordo com sua execução). Achando um fator que esteja atrapalhando seu objetivo, você terá duas opções (para tudo na vida são sempre essas mesmas duas): fazer algo para reverter/acabar com a situação (costumamos sempre pensar que emoções ruins atrapalham e que as boas ajudam, mas isso infelizmente não é verdade, somos mais complexos do que isso e é comum ver pessoas apaixonadas ficarem sem capacidade de concentração ou pessoas que executam melhor algo sobre pressão), ou lidar com o fato de que você não pode fazer nada e terá que conviver com essa situação. Observe também que muitas vezes quando resolvemos uma situação que nos estava incomodando continuamos tendo o “sintoma que nos atrapalhava” porque é possível que a ação de resolver o problema tenha nos cansado emocionalmente e que, mesmo tendo conseguido solucioná-lo ainda não tenhamos recuperado a Barra Emocional, apenas conseguido acabar com o que a estava consumindo. Temos, então, que descobrir coisas que carreguem essa Barra, começar sua pesquisa por pequenas coisas que te façam feliz é um ótimo começo.

Mais uma vez continuando com nosso exemplo, vamos supor que nossa causa não estava na parte Emocional, para podermos chegar, então, à análise da parte Mental. Na minha opinião, a análise da Parte Mental é a mais complicada, afinal esta parte da nossa constituição está acostumada a analisar as outras partes e não a ser analisada. Formular perguntas (como sugeri para a parte Emocional) para o Mental já é complicado: “Estou desgastado Mentalmente?” “Meu Raciocínio está cansado?”  etc, são perguntas vagas e difíceis de responder. É por este motivo que eu sugiro que a auto-análise seja feita na ordem descrita acima: se a causa não estava no Físico e nem no Emocional só pode estar no Mental. Depois de identificar que a causa está no Mental nos deparamos com mais um problema: como aumentar essa Barra? Sempre lembrando que isso tudo é totalmente pessoal, o que eu tenho observado em mim e nos meus amigos com quem já dividi a “teoria das  barrinhas” é que o Mental relaxa em uso, porém em um uso mais relaxado. O que quer dizer isso? Que situações divertidas que usem o Mental provavelmente subirão essa Barra.  Dormir ou passar algumas horas numa banheira de hidromassagem não costumam subir a barrinha Mental, porém, assistir a Filmes, Seriados ou Jogar algo que envolva o raciocínio pode ser de grande ajuda. Quando eu estava escrevendo minha tese de mestrado na Itália, a cada 3 horas lendo e escrevendo totalmente focada na tese, meu Mental parava de funcionar e eu não conseguia nem mais lembrar as conjugações verbais em italiano. Eu então jogava por uma ou duas horas jogos de RPG (daqueles com mil coisas para pensar, estratégia, equipamentos, poções, poderes, etc) e depois voltava a trabalhar na tese. Essa foi a fórmula que eu encontrei para essa situação específica e que funcionou para mim, é um exemplo para que cada um busque a sua.

Um dos meus professores de canto dizia (acompanhada de mímica) a seguinte frase: “Um cantor precisa de muita Papa (gesto de comer), pouca Pepa (gesto de beber) e nenhuma Pipa (gesto obsceno).” Se você não quer virar um cantor gordo, bêbado ocasional e celibatário creio que a melhor solução é se autoconhecer e aprender a FAZER O CÁLCULO DAS SUAS BARRINHAS. Controlando o sobe e desce de todas as suas barrinhas você poderá escolher conscientemente o que fazer ou não fazer tanto na sua vida pessoal quanto na profissional, sabendo prever quais os ganhos e as perdas de cada escolha.

Livros que podem ajudar:

  • RIGHINI, Federica; ZADRA, Riccardo. Maestro di Te Stesso – PNL per Musicisti. Milano: Edizioni Curci, 2010.²
  • GONZALES, DC; MCVEIGH, Alice. The Art of Mental Training. United States of America: GonzoLane Media, 2013.

  • WILLIAMS, Janet. Nail Your Next Audition: The Ultimate 30-Day Guide for Singers. United States of America: Lightning Source, 2007.³

Para ter aulas de canto com Tati Helene entre em contato aqui.

¹ (Tradução livre) “São apenas três coisas que necessitamos para fazer uma carreira como cantor: Concentração, Técnica e Coragem.” 
² Tive aulas com a Federica durante meu mestrado em Performance de Ópera no Conservatório Antonio Buzzolla em Adria (Itália) e acho seu método de aplicação da PNL para músicos maravilhoso e essencial.
³ Conheci a Janet na Lotte Lehmann Akademie na Alemanha em 2012. Neste livro ela faz um passo a passo de como se preparar para uma audição.

12 thoughts on “O cálculo ou a teoria das Barrinhas

  1. A teoria é muito boa, o método de abordagem também, mas o texto é fantástico! muito bem escrito, leve, agradável e com um ritmo muito suave, a gente lê e nem percebe que leu.
    Claro que adorei a cultura gamer que impregna todo o texto.

  2. Adorei, Tati. Vou recomendar a leitura para a Fernandinha (Amor). Ela vai amar ainda mais pq vc usou uma associação que ela entende e absorve bem – The Sims! Boa sorte com seu blog.

  3. Muito bom mesmo Taty, Adorei! E a forma como você escreve e exemplifica facilita imensamente o aproveitamento do texto de forma que logo passamos à tentativa do sucesso da prática.
    A teoria das barrinhas serve para a vida em todos os seus aspectos.
    Parabéns pela iniciativa!
    Bjs

  4. A teoria das barrinhas é um espetáculo e muda a vida das pessoas! Não importa se você é cantor lírico ou não, use a teoria das barrinhas para aumentar sua qualidade de vida!

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