Há alguns posts atrás eu expliquei as técnicas para o ataque do som (caso não tenha lido esses posts ainda, comece por eles: o ataque do ar, o ataque das pregas vocais parte 1 e parte 2), hoje falarei sobre o corte.
O corte do som é diretamente ligado ao ataque seguinte, sempre que estamos executando frases em sequência, situação mais comum no canto. Ao atacarmos a primeira frase da música, podemos dizer que o aparelho fonador, principalmente as pregas vocais, está zerado, ou seja, está sem nenhuma tensão residual* de outra atividade. Já nas frases seguintes, as pregas vocais carregarão consigo resíduos do que foi executado antes. A posição em que as pregas acabaram a frase será a posição em que o corpo naturalmente desejará começar a próxima frase. É claro que é possível corrigir esta posição antes do próximo ataque, mas quanto mais rápida for a cesura entre as frases. mais difícil será essa correção, o melhor com certeza será já acabar na posição ideal para recomeçar.
“… prepation for succeeding onset requires giving equal attention to the release.”¹
Um dos erros mais comuns nos primeiros anos de estudo do canto é abandonar as últimas notas, pondo dessa forma toda a frase, por mais bonita que tenha sido, a perder (lembre-se de que a última coisa que você fizer será a mais recente ouvida pela platéia e portanto aquela com mais tendência a permanecer na memória). Isso normalmente acontece por duas razões e ambas são psicológicas. A primeira é a ansiedade para a próxima frase, fazendo com que o fim da atual não seja cuidado, já que sua concentração está voltada para o que terá que fazer no futuro e não pensando no presente (eu sei que parece um discurso de meditação, mas estar concentrado no momento presente é essencial para uma boa execução do canto). A outra é a auto-admiração, que acontece quando, por milésimos de segundos, você tem a sensação de que “o pior já passou” ou “viva! eu consegui!”, focando sua concentração dessa vez no momento passado e mais uma vez abandonando tecnicamente o presente, sua última nota. O melhor jeito de resolver esse problema, não importando qual das duas causas esteja ocorrendo, é saber que movimento técnico deve ser feito para cortar a última nota. Desta forma, sua concentração terá um objetivo no presente ao qual se agarrar.
Vou falar especificamente sobre três tipos de cortes: o corte frouxo, o corte na marra e o corte com o ar. Creio que pelos nomes com os quais “batizei” cada um desses cortes já fica claro qual é o que recomendo, mas falarei dos outros dois também porque, dependendo da interpretação desejada, eles podem ser usados como recursos (leia mais sobre técnica standard e recursos aqui). Como recursos falarei das consequências do seu uso para que, ao escolher usá-los, você também já prepare o cuidado necessário para o efeito negativo. Começarei falando dos cortes como recursos, pois sua compreensão é mais fácil, já que normalmente todos já os utilizaram sem querer, e também por esta ajudar na compreensão do corte standard.
Cortes como recursos
Para realizar esses cortes termina-se a fonação pelas pregas vocais, interrompendo a vibração das mesmas, fazendo com que elas não sejam mais capazes de vibrar. Existem duas formas de fazer isso: o corte frouxo ou o corte na marra.
O corte frouxo
Como se faz? A fonação deve ser terminada ao afastar as pregas vocais, ou seja, separando-as, abrindo-as, de forma a que parem de vibrar.
Qual o resultado sonoro? É um corte suave com um som soproso, ou seja, com escape de ar e com perda de harmônicos antes de desaparecer.
Qual seu uso? Qualquer escolha interpretativa é totalmente pessoal, portanto ele pode ser usado onde sua interpretação ache necessário. Eu particularmente só o usei pouquíssimas vezes em música de câmara, na minha opinião seu efeito é muito suave para que seja usado em repertório operístico e suas consequências podem ser difíceis de controlar e podem atrapalhar bastante a execução que se seguirá.
Quais as consequências? As pregas vocais estarão bem separadas para o próximo ataque e, como acabaram de passar por uma fonação com escape de ar, a tendência é que o próximo ataque também seja soproso e por isso atrapalhe totalmente o posicionamento correto de suas pregas para a próxima frase. Para corrigir essa consequência é necessário atenção redobrada ao mecanismo de fechamento das pregas no período de pré-fonação para obter o ataque correto nas próximas frases.
O corte na marra
Como se faz? A fonação deve ser terminada apertando uma prega vocal contra a outra a ponto de que elas não consigam mais vibrar.
Qual o resultado sonoro? É um corte brusco, com um leve acento no milésimo final do som. Não há perda de harmônicos.
Qual seu uso? Volto a dizer que a escolha interpretativa para seu uso é pessoal. Normalmente esse corte é usado para aumentar a dramaticidade de uma frase.
Quais as consequências? As pregas vocais terão uma tensão extra acumulada e, para que o próximo ataque seja totalmente correto, será necessário um tempo a mais para que essa tensão seja liberada. Em respirações rápidas, é provável que não exista tempo hábil para essa liberação e que a próxima frase seja atacada em cima dessa tensão extra, o que atrapalhará a qualidade sonora. O uso constante desse corte pode machucar as pregas vocais por excesso de fricção entre elas, fique atento a qualquer desconforto.
Corte Standard: o corte com o ar
Ao contrário dos cortes acima, o corte standard é um corte realizado pelo fim da expiração.
Como se faz? Nada é feito com relação às pregas vocais, apenas se interrompe a saída do ar. A vibração das pregas será suspensa por falta de matéria prima para vibrarem.
Qual o resultado sonoro? O som da frase permanecerá com a mesma qualidade até seu completo desaparecimento, com suavidade porém mantendo a qualidade também. Podemos inclusive identificar um micro “eco” nesse corte pois, ao interromper o fluxo de ar, por um brevíssimo tempo as pregas ainda vibram até pararem. Para entender isso melhor, acompanhem o vídeo abaixo, que mostra um exercício funcional com corda naval:
Nesse vídeo é possível ver que mesmo depois que o praticante para o movimento dos braços, as cordas têm uma pequena oscilação até pararem totalmente, é o mesmo que acontece com as pregas vocais.
Qual seu uso? Como é um movimento de técnica standard ele deve ser usado como padrão, só sendo substituído por outro caso se deseje colocar um recurso sonoro no lugar.
Quais as consequências? Por ser uma técnica standard ela não tem consequências negativas, pois não deixa tensão residual. Uma consequência sonora interessante desse corte é que nesses brevíssimos momentos em que as pregas ainda vibram mesmo com a expiração terminada, seu pulmão já estará inspirando de novo, gerando a ilusão auditiva de que nem ocorreu uma respiração ou de que ela foi muito menor do que ela realmente foi.
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