A capacidade de memorização está na lista das necessidades básicas de um cantor lírico. Diferente da maioria dos instrumentistas o cantor executa a maior parte de suas performances (no caso de ópera completa, 100% das performances) cantando de cor e precisa ter um bom domínio da arte da memorização.
Sobre esse assunto compartilho com vocês hoje mais um interessante artigo de Noa Kageyama (leia o outro já postado no blog aqui). Esse artigo foi publicado originalmente no blog do site The Bulletproof Musician sob o título Why Some Musicians Seem to Be Memorization “Naturals” (and How to Become More of One Yourself) e traduzido para o português por Jéssica Ranft no seu blog (veja o artigo aqui). Muito interessante!
Por que alguns músicos parecem ser memorizadores “naturais” (e como tornar-se um)?
Ah, o temido deslize de memória.
Todos já passamos por isso ao menos uma vez na vida. E passamos muitas noites em claro tocando uma música várias vezes na cabeça, buscando reafirmar para nós mesmos que tudo está memorizado. Ou então passamos a maior parte de uma performance com medo de esquecer o que vem depois, ou ficar preso em um looping infinito.
Pode não ser, literalmente, um caso de vida ou morte, mas às vezes parece com isso.
No entanto, existem aquelas pessoas as quais a memorização parece ser algo que vem naturalmente. Fácil. Praticamente sem esforço.
O que acontece? Eles sabem algo que não sabemos? Ou seu cérebro é conectado de forma diferente do nosso?
O estudo da memorização
Roger Chaffin, professor de psicologia na Universidade de Connecticut (e flautista amador), conduziu inúmeros estudos sobre o processo de aprendizagem de músicos de alto nível.
Vários desses estudos estão relacionados ao processo de memorização, e fornecem alguns conhecimentos sobre como memorizadores especialistas memorizam.
Dois tipos de memória
Tipo #1: Encadeamento em série
Existem dois tipos de memória utilizadas por músicos. Cada uma tem seus prós e contras, então é bom saber qual é qual, para não depositar todas as suas fichas no lugar errado.
O primeiro tipo chama-se encadeamento em série. Isto acontece quando uma frase sinaliza a deixa da próxima frase, que fornece a deixa da próxima, e assim por diante. No lado positivo, este tipo de memória se desenvolve naturalmente enquanto você trabalha em uma peça, por isso não há muito o que fazer além de praticar normalmente. E funciona muito bem também, desde que as condições de recuperação sejam próximas às condições de estudo. Mas quando isso acontece?
Quaisquer distrações na nossa experiência de prática na sala de estudo, sejam internas ou externas, têm o potencial de enfraquecer essa “corrente” que conecta uma frase ou passagem à próxima. E se uma corrente se quebrar, ficamos um tanto ferrados porque, normalmente, a única forma de recuperar o caminho é começando pelo início da corrente. É como cantar a música do alfabeto. Rapidamente: comece a cantar a música do ABC a partir do F – MAS NÃO conecte a melodia a partir do A. Não é tão fácil, certo?
Eu tive um trabalho durante a graduação que exigia a ordenação de várias gravações em ordem alfabética. Você pode achar que a esta altura eu teria decorado o alfabeto, mas, surpreendentemente, eu precisava cantar a música do ABC para lembrar qual letra viria a seguir. Ainda mais surpreendentemente era a quantidade de vezes que eu precisava começar do A. Na verdade, ainda sou incapaz de começar de outro ponto além do A e Q. Bizarro.
Tudo isso para dizer que, se o encadeamento em série for o único tipo de memória que desenvolvemos para o nosso recital, provavelmente deveríamos ter um pouco de receio em relação à confiança em nossa memória.
Tipo #2: Acesso ao conteúdo endereçável
Se o encadeamento em série for o piloto automático, o segundo tipo de memória é o controle manual. Chamada de acesso ao conteúdo endereçável, ela envolve a criação de pontos de recuperação ou marcos que nos situam em vários locais da peça. Se tudo for por água abaixo e a corrente for quebrada, ao invés de voltar ao início, não estamos mais do que a dois compassos de distância de um recomeço.
Porém, o lado negativo é que esses marcos precisam ser criados e estudados. Por isso necessita de um esforço deliberado e um pouco de tempo. Se você me perguntar, considero este um preço pequeno a se pagar pela paz de espírito em conhecer uma peça como se fosse a palma da sua mão.
Como são os marcos de recuperação?
Então, você se pergunta: como são esses marcos de recuperação?
Existem pelo menos quatro tipos diferentes.
- Marcos estruturais são quebras naturais na estrutura da peça, como a exposição/desenvolvimento/recapitulação, ou onde as frases iniciam e terminam.
- Marcos de expressividade são baseados em humor e caráter. As seções que são tristes/felizes/sarcásticas, ou que representam uma ação específica ou diálogos entre as vozes.
- Marcos de interpretação são musicais por natureza, e se relacionam com mudanças no andamento, fraseado, dinâmicas, etc.
- Marcos de base são relacionados à técnica, como arqueamento ou dedilhado.
Juntos, estes quatro tipos de marcos adicionam camadas de informações à música, como pontos de referência que nos permitem saber se estamos no caminho certo ou não, e nos ajudam a recuperar se nos perdermos no meio do caminho.
Como isso acontece?
Roteiro da performance mental
Através de estudos de observação de músicos no processo de aprendizagem e memorização de novas obras para performance, Chaffin descobriu que esses marcos de performance são criados durante as sessões de estudo, e também são ensaiados durante a prática.
Em outras palavras, ao invés de iniciar uma frase inconscientemente e sem uma clara intenção, os memorizadores especialistas iniciam e terminam nesses pontos de recuperação durante a prática, pensando sobre a estrutura, expressividade, interpretação, ou nos elementos técnicos envolvidos. Com o passar do tempo, um “roteiro mental” da peça é criado e se codifica em memória, junto com o roteiro físico (por exemplo, a execução técnica).
Quando os memorizadores especialistas trabalham nos detalhes técnicos e musicais de uma peça, construindo decisões claras e deliberadas sobre a estrutura musical, caráter, fraseado, dedilhado, e no que focar em cada frase, eles não somente aumentam seu nível de musicalidade, mas também criam âncoras mais profundas na memória com nesses marcos de performance. Pensar a respeito dessas coisas durante a prática é como prestar atenção às placas de sinalização de trânsito e pontos de referência enquanto dirige em uma cidade nova para onde você acabou de se mudar.
O gráfico abaixo representa um mapa dessa memória (assim como uma ilustração, não é que você precise escrever isto num papel distante da partitura, mas eu suponho que você possa fazer isso).
Tome uma atitude
A grande mensagem que isto traz é que, quando se trata de memorização, apenas tocar uma peça várias vezes no piloto automático é uma forma ineficiente de utilizar o tempo. Além disso, a forma como praticamos cria camadas de base para a nossa performance.
Mais especificamente, o que pensamos durante a prática influenciará o que pensamos durante a performance. Então, se não criarmos ou praticarmos um roteiro mental com antecedência, nossa mente criará um para nós – que provavelmente será mais baseado em medo e ansiedade do que em nuances e elementos musicais que geram uma performance mais interessante e comprometida (e livre de preocupações).
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Dr. Noa Kageyama é um violinista que resolveu partir para a área da Psicologia da Performance e hoje integra o corpo docente da Juilliard School e New World Symphony em Miami, além de ser convidado das principais instituições de ensino de música nos EUA, ensinando músicos como tocar o seu melhor sob pressão através de aulas ao vivo, treinos e um curso on-line..
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