Uma das maiores confusões que existe no canto lírico é em torno da palavra natural .

Confesso ficar irritada quando alguém ao me elogiar usa este termo (“que voz natural”, “que canto natural” etc). Claro que recebo o elogio feliz por saber que estão elogiando minha capacidade de não demonstrar esforço físico (da mesma forma como uma bailarina sempre sorri apesar de estar fazendo uma grande força para erguer sua perna). A parte que me incomoda é a ideia de o canto ser um “dom”, de que aquela qualidade veio até mim por acaso e não que eu a busquei ativamente. Quando nos preparamos tecnicamente, a intenção é de que nossa atuação transmita naturalidade: se o público sentir o esforço físico necessário para realizar o agudo em pianíssimo do fim da ária da Suor Angelica, perderá sua conexão com a trama e com a emoção da ária. Este processo é semelhante ao de tirar o nariz de palhaço na frente do público (quando se estuda técnica clown se aprende essa “regra” desde o início: nunca tire o nariz de palhaço na frente da plateia). Para o espectador, o cantor deve sempre parecer um super herói com seu poder da supervoz que com sua interpretação hipnotiza o público para dentro da trama da ópera. O problema é que muitos cantores acreditam no “nariz de palhaço” e acham que o canto lírico é algo natural, o que atrapalha muito no seu estudo. Além disso, torna difícil para aqueles que convivem proximamente com o profissional do canto a compreensão do que um cantor realmente faz e qual a necessidade de dedicação e treino em suas atividades. É mais fácil entenderem que um jogador de futebol precisa dormir bem antes de um jogo do que entenderem o quanto é prejudicial um cantor exaurir seu corpo no dia ou na véspera de uma récita, imaginem para compreender todo o cálculo em que vive um cantor.

Outra confusão em torno da palavra natural está no seu emprego de forma pedagógica. É comum muitos professores pedirem uma “emissão natural” ou uma “respiração natural” tentando conseguir do aluno que ele NÃO faça algum movimento, pois grande parte do que ele tem que aprender é a não fazer alguns movimentos e/ou contrações que causaram tensão ao cantar. Esse emprego da palavra aumenta a crença na naturalidade do canto o que torna totalmente anti-pedagógico seu uso.

Por fim temos mais um conceito confuso da palavra natural em relação ao canto, é o conceito de que “fulano canta por natureza”. Essa frase pode ser usada para duas situações distintas. A primeira delas é o caso de alguém jovem (até uns 25 anos) que canta sem técnica (consciente ou inconsciente) mas que mesmo assim consegue produzir um determinado som, neste caso o “fulano” está cantando usando uma facilidade física comum em pessoas mais jovens, mas que acaba. Na ausência de domínio técnico, ao acabar essa facilidade, o cantor entra em um declínio vertiginoso. Wyke fala sobre este processo do ponto de vista fisiológico:

“Thus as a singer ages, he is faced with an inevitable reduction in the efficiency of his intrinsic laryngeal reflexogenic systems that is reflected in vocal instability.”¹

O outro caso do “fulano canta por natureza” é o caso das pessoas que, por alguma razão (as possibilidades variam desde intuição até reencarnação hahaha), cantam com técnica inconsciente, fazem os movimentos técnicos corporais corretos mas não têm a mínima noção consciente do que estão fazendo.

Todos esses usos da palavra natural alimentam a crença da naturalidade do canto, mas é essencial a um estudante de canto entender o quão não natural ele é. Você consegue colocar o pé na sua cabeça como um atleta que trabalhou anos sua flexibilidade consegue? É natural alguém ter essa flexibilidade? Não, nada disso é natural. Atividades de extrema complexidade física, onde o indivíduo se treina intensamente para se aproximar do sobre-humano não são naturais e o canto lírico está dentro dessas atividades, é por isso que um agudo potente bem produzido causa o mesmo frisson de quando vemos alguém em parada de mão encostando os pés na cabeça. Entender que o desempenho de um cantor lírico está lado ao lado com o dos artistas que fazem pirâmide humana no Cirque du Soleil, por exemplo, é um passo muito importante, pois dá a dimensão do treino necessário para dominar essa arte. O conceito de que para alcançar seu objetivo é necessário 1% de talento e 99% de suor se aplica totalmente ao canto.

No livro Fisiologia de la comunicación oral de Jorge Perello e Jaime Peres me deparei com dados que dão exatamente a magnitude do que é necessário controlar no ato de cantar. Lembrando que esses dados foram calculados numa respiração normal e que calcula-se que durante o canto eles podem triplicar:

“Si calculamos la velocidad con que pasa el aire por el árbol respiratorio en un golpe de glotis obtendremos los siguientes valores: en la glotis pasan de 50 a 120 metros por segundo, en la tráquea, de 11 a 35m/s. y en los bronquios de 5 a 2,5m/s.

Si comparamos estas velocidades con los vientos clasificados meteorológicamente tendremos que: la corriente de aire que pasa por la glotis es el nº 6, el <<huracán>> cuya fuerza arranca árboles; la corriente aérea que pasa por la tráquea corresponde al viento n°4, llamado <<fuerte>> y hace balancear los árboles; el viento que pasa por los bronquios equivale al nº 2, denominado <<fresquito>> que es que hace mover las hojas.” ²

Controlar velocidades de ar dessa magnitude não é nem um pouco natural. Canto lírico exige um domínio, força e controle físico como um atleta olímpico. Somos Atletas da Voz.

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¹ (Tradução livre) “Quando um cantor envelhece, ele se depara com uma inevitável redução da eficiência de seus sistemas reflexogênicos intrínsecos da laringe que se reflete na instabilidade vocal.” WYKE, B. D.  Laryngeal neuromuscular control systems in singing: a review of current concepts. Folia Phoniatrica 26,1: 295-306, 1974. Disponível em: < http://www.karger.com/Article/Abstract/263791 />. Acesso em 18 fev. 2017.
² (Tradução livre) “Se calcularmos a velocidade com que passa o ar pelo aparelho respiratório em um golpe de glote, obteremos os seguintes valores: na glote passam de 50 a 120 metros por segundo, na traquéia de 11 a 35 m/s e nos brônquios de 5 a 2,5 m/s. Se compararmos estas velocidades com a dos ventos classificados meterologicamente teremos: a corrente de ar que passa pela glote é um n° 6,  o <<furacão>> cuja força arranca árvores; a corrente de ar que passa pela traquéia corresponde a um vento nº 4, chamado <<forte>> e faz balançar as árvores; o vento que passa pelos brônquios equivale a um nº 2, denominado <<fresquinho>> que é o que faz mover as folhas.” – PERELLO, Jorge e PERES, Jaime. Fisiologia de la comunicación oral. – Audiofonologia y logopedia vol. III. Espanha: Editorial Científico/Médica, 1972.

7 thoughts on “Canto lírico não é natural

  1. Apropriadíssima a analogia com o atletismo. Se bem que pensando melhor não é analogia , é fato! A magia se faz quando o domínio da técnica (que leva ao conhecimento minucioso de sua própria fisiologia) permite o alcance desse grau de esforço físico de forma não -sacrificante, de um jeito que passa a parecer “natural” até para o super aplicado, estudioso e feliz cantor! Anos de preparo e de estudo para entender as velocidades dos furacões sonoros contidos em uma concerto, em uma ária! Brava!

  2. Te parabenizo pelo Blog e pelas colocaçoes coerentes e explicativas,simplesmente estou adorando le los!
    Estive desconectada pela perda de senha e naoa companhei como deveria,mas devo dizer que neste artigo,traduzistes palavra por palavra,minha frustraçao quando mesmo sem querer e me elogiando,diziam que cantava naturalmente,sem esforço….por isso entendo perfeitamente o nome do blog,que retrata a importancia vital da profissao no controle do proprio instrumento!
    Um grande abraço e felizes festas!
    Adriane Queiroz

  3. Obrigada Helene.consegui acessar o blog e estou “devorando” tudo o que não li até agora. Canto no madrigal Ars Viva aqui de Santos a muitos anos é o que você explica é muito proveitoso.

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